janeiro 26, 2010

citação na manga

Num livro que ganhei lá de Portugal em outubro ["No teu deserto", de Miguel Sousa Tavares], há uma frase que me chamou a atenção quando li: "[...] nunca me tinha imaginado na pele do próprio Estado português". Na história, ela foi dita pelo personagem principal em uma situação de resolução diplomática que se passava no Ministério da Informação argelino.
Desde que me deparei com esses ditos (tendo assinalado-os no texto), eu pensei: será que vou me sentir assim aqui? De posse da auto-pergunta, resolvi guardar essa citação "na manga", esperando o melhor dia para voltar a ela. E isso aconteceu nesta terça-feira.
Sou bolsista SWE do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq - Brasil). Na Espanha, com o apoio do governo brasileiro, desenvolvo parte dos meus estudos de doutorado (como a maioria das pessoas que lê este blog está cansada de saber...). Isso me põe em um contexto "público" de várias maneiras. Pela minha obrigação com o cumprimento das atividades aqui previstas, pela necessidade de "prestar contas" ao Governo e à minha agência de fomento (e ao povo de certa forma...), pelo meu compromisso com o "desenvolvimento científico"..., pelo meu compromisso pessoal, pela responsabilidade social etc. Muita coisa.
E foi considerando tudo isso, que hoje me vi "na pele do Estado brasileiro". Não por mim, exatamente. Pois - ainda bem - permaneço bem feliz no auge da minha insignificância. Mas pela situação que vivi.
Depois de meses construindo uma rede de contatos e fazendo arranjos de datas e "tals", tive uma "cita" (reunião) com um professor que é considerado um dos "pais" da disciplina (do campo de estudos) que vim investigar em território espanhol. Uma conversa ótima, receptiva, que durou cerca de 30 minutos e que fez valer um tanto de coisa. Não só por informações preciosas que obtive, derivadas de insights a partir de diálogos soltos, mas por ter me colocado, curiosamente, numa situação política.
Durante o encontro deixei de ser o "chico brasileño" de sempre, para ser alguém "ilusionado" (expressão que utilizou o professor catedrático que me recebeu) com o jornalismo e que pode fazer ótimas pontes "entre a academia espanhola e a brasileira" (isso tem a ver com coisas bem específicas que conversamos, assuntos teóricos mesmo, que vou pular aqui pra não me alongar). É claro que nessa fala predomina muito um discurso de "boa vizinhança", mas ela me fez lembrar na hora da citação do autor português referida acima.
Na experiência do período de estágio no exterior, há dias que parecem que serão profundamente improdutivos, como estava sendo o meu até então. Só que de repente vem algo súbito, às vezes uma só idéia, uma só frase, e tudo muda.
E foi graças a esse encontro, muito buscado, que eu digo ao CNPq (que não é uma pessoa e que tampouco lerá essas linhas) que as coisas aqui valem a pena. Que elas acontecem de maneira difusa e que precisam de tempo. E que eu, "seu bolsista", de alguma forma "na pele do Estado brasileiro" em Madrid, sou muito grato e espero fazer valer o investimento que está sendo feito na minha investigação.
Quando eu expliquei ao professor sobre a minha bolsa e sobre essas políticas de incentivo científico no Brasil e percebi sua cara de "espanto" (talvez), recordei-me de uma frase que a Vírginia Fonseca, professora da UFRGS, me disse em setembro lá no meio da praça central de Braga, em Portugal (de novo os lusos...): "nós não viemos aqui só para ouví-los, mas para sermos ouvidos". Menos que uma colonização às avessas, isso tem a ver, de alguma forma, com a personificação dupla a que estamos sujeitos em situações como a minha: eu sou a minha pesquisa e nós no (e pelo) Brasil fazemos pesquisa.


Madri, 26 de janeiro de 2010.
Madrid, 26 de enero de 2010.

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