Eu namorava esse livro há tempos. Desde as minhas idas e vindas de Porto Alegre a Belo Horizonte. Era flerte de aeroporto, que agora se consumou. Li de uma só vez. "Carta a D. - História de um Amor", de André Gorz, em co-edição da Annablume com a Cosac Naify.
A publicação tem fomato de carta, de memórias, onde o autor narra passagens dos mais de 60 anos de sua vida ao lado da esposa Dorine. Ambos cometeram suicídio em 22 de setembro de 2007, num gesto que, para muitos, como diz o comentarista José Pereira da Silva (no posfácio), foi um "puro ato de amor".
Ao longo das páginas, mais que descrever seu cotidiano com Dorine e a imagem (de tom "meio" psicanalítico) que construiu sobre ele, Gorz reflete sobre o amor. E nessas reflexões, pelo menos para mim, fica algo que transcende a delimitação de um tempo. Ou seja, no caso de Gorz e Dorine, diz-se de um amor de décadas - é verdade -, mas o amor sobre o qual se lê no livro é aquele que se pode sentir, seja com quem for, seja quando for. Pois há sempre no sentimento uma certa suspensão. Isso eu estou dizendo, por crer.
É nesse sentido que aparecem a profundidade e a riqueza das palavras do filósofo/jornalista. Com as quais me identifiquei e que, pela intensidade que ultrapassa sua relação específica, relembro, "junto comigo" e meus apontamentos, aqui.
"Com você, eu estava em outro lugar; um lugar estrangeiro, estrangeiro a mim mesmo. Você me dava acesso a uma dimensão de alteridade suplementar - a mim, que sempre rejeitei toda identidade e juntei uma identidade na outra, sem que nenhuma fosse realmente a minha". (p. 10)
"Mas nada disso dá conta da ligação invisível pela qual nós nos sentimos unidos desde o início. Por mais que tivéssemos sido profundamente diferentes, mas eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original - há pouco eu falava de 'experiência fundadora': a experiência da insegurança. A natureza desta não era a mesma para você e para mim. Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós. Nós tínhamos de assumir a nossa autonomia, e eu descobriria em seguida que você estava muito mais preparada para isso do que eu". (p. 13)
"A precisão das lembranças que eu guardo me diz até que ponto eu a amava, a que ponto nós nos amávamos". (p. 17)
"[...] o amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais". (p. 20)
"Era isso: você havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia". (p. 20)
Interessante é que Gorz também pratica o "inverso" da reflexão teórica que vai realizando ao apontar para os limites da teoria no que diz respeito ao sentimento. Ele respeita a existência de outras formas de apreensão do "real" e, ao mesmo tempo, se coloca no lugar de quem precisa da intelectualidade para viver:
"É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou ela. Estamos aquém e além da filosofia". (p. 26)
"Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade". (p. 41)
"Você ia se desenvolvendo sem essas próteses psíquicas que são doutrinas teóricas e os sistemas de pensamento. Eu precisava dessas coisas para me situar no mundo intelectual, e não as questionava". (p. 42)
E colocando-se na condição de alguém que lida com as palavras, aponta para um amor que se contrói em meio à ímpar atividade do escrever, que se liga diretamente ao que vem a ser realizar tal atividade:
"Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você". (p. 28)
"O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. [...] O tema é a condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa qual tema é o melhor, desde que ele permita escrever". (p. 28)
"O escrevedor só se tornará um escritor quando a sua necessidade de escrever for sustentada por um tema que permita e exija que essa necessidade se organize num projeto. Somos milhões a passar a vida escrevendo, sem nunca terminar nem publicar nada. Você mesma passou por isso. Você sabia, desde o início, que precisaria proteger meu projeto indefinidamente". (p. 28 - 29)
"A magia da literatura: ela me dava acesso à existência na medida em que eu tinha me descrito, escrito, na minha recusa de existir. Aquele livro era o produto de minha recusa, era essa recusa, e, por sua publicação, me impedia de perseverar nessa recusa". (p. 43)
Talvez meu apreço imediato pela obra ainda passe por um outro aspecto que me leva - como sempre - a pensar nas coincidências. Gorz escreve também sobre a pesquisa acadêmica que permeou sua vida. Assim, curiosamente, um livro sobre o amor, me enche de epígrafes para pensar a qualidade de vida e o que significa pesquisar sobre ela.
"Você não precisava das ciências cognitivas para saber que, sem intuições ou afetos, não há nem inteligência, nem sentido". (p. 41)
"Eu não queria entregar o resultado de uma investigação, mas escrever essa mesma investigação enquanto ela se efetivava, com suas descobertas em estado inicial, seus fracassos, suas pistas falsas, sua elaboração tateante de um método que nunca chega a termo. Estava consciente de que, 'quando tudo tiver sido dito, tudo ainda ficará por dizer, sempre restará tudo a dizer' - em outras palavras, é o dizer que importa, não o dito -, isso que eu tinha escrito me interessava menos do que aquilo que eu poderia vir a escrever em seguida. Acho que isso é verdade para todo escrevedor/escritor". (p. 46)
O livro termina com duas passagens primorosas. Uma citação direta ao pensamento de George Bataille e um escrito sobre a redescoberta perene do sentido inexplicável do sentir.
"Não quero mais - segundo a fórmula de Georges Bataille - 'deixar a existência para mais tarde'". (p. 70)
"Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher". (p. 70)
Nesse momento da narrativa, Gorz está observando a respiração fraca de Dorine e eu, ontem a noite, deitado que estava, quase sem respirar, fui dormir.
GORZ, André *. Carta a D. História de um amor. Tradução: Celso Azzan Jr. São Paulo: Annablume/Cosac Naify, 2008.
* André Gorz nasceu em Viena em 1923 e escreveu dezenas de livros sobre a "questão social". Destacam-se suas reflexões acerca do trabalho, do sindicalismo e da ecologia (tema sobre o qual publicou três obras).
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