Talvez o último "auto-pensar" tenha sido o mais forte de todos. Talvez não, aliás. Com certeza. Pois não fui eu quem me ofereci. Quer dizer, fui eu. Mas em forma de outrem, sem cara, sem rosto, repleto de fragmentos que de forma oscilante vieram, nos meses que antecederam essa data, bater à minha porta. Ou mais que isso, mais explicitamente, me esbofetearam.
Interessante que, com tudo isso, penso que adquiri um certo sadismo. Não por afirmar o prazer pela dor (não, eu não gosto de sofrer e - muito longe disso - minha vida não é sofrimento!), mas por saber que há coisas que precisam ser encaradas. Obstáculos e percalços que não se situam propriamente num rito de passagem, mas que são ritualísticos do ponto de vista de uma cerimônia "com você mesmo".
Já diz uma amiga minha - e um dos textos que reproduzirei abaixo, ratifica essa idéia: nem todo mundo sente, necessita ou, também, é acometido desse "mal" que é bem. O encontro consigo mesmo é um choque e uma reunião. É o momento de uma (re)disposição de peças e coisas. De sentidos e sentimentos que, menos que essenciais, são transitórios. E trazem à luz sedimentos decantados, que na mistura com o que também se acumula na superfície, forma novos elementos para a fase outra (e nova) que virá - sempre - depois.
Não estou a dizer de ciclos. Digo, principalmente, de marcos.
E esse meu marco, os meus 30 anos, completados no último dia sete, é, para mim, algo pontual. E marcante, claro. Em sua preparação espontânea, fez turva a água de movimento calmo do meu rio. Pegadas no barro do fundo, mescladas com as folhas secas que caem e boiam acima. Ou graveto de fora (acontecimentos), que pelas minhas próprias mãos, resolveu brincar com alguma - ou aquela - pretensa limpidez.
Posso desconfiar da qualidade desse texto e de suas metáforas que podem ser pouco "brilhantes". Que bom, entretanto, que a desconfiança me habita melhor. E isso posso afirmar, sem qualquer exagero de auto-confiança. Com três décadas completadas, desconfio mais de mim. Dos meus ideais e das várias idéias que, nos outros, busquei para me entender. Sou aquilo que dizem e pensam? Não. Ou não somente.
Penso que sou e serei muito mais do outro do que de mim. Mesmo que possa não parecer em algum momento, sei disso. Mas digo hoje tudo o que disse acima porque, talvez, me conheça um pouco melhor (em vários-muitos aspectos) e porque aprendi (e venho tentando compreender), no embate superado entre coisas das melhores e piores que já me ocorreram, a me oferecer, de fato, o meu próprio olhar para o mundo.
Na toada dos 30, deixo dois textos interessantes e uma música sobre este "meu mês", que eu gosto tanto.
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Fazer 30 anos
Affonso Romano de Sant'Anna
QUATRO pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou: vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e, por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de alguma coisa grave.
Antes dos 30 as coisas são diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou 21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual, uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato, o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é cair em área sagrada.
Até os 30, me dizia um amigo, a gente vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.
Quando alguém faz 30 anos, não creiam que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha, pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia. Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós, arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade, fazer 30 anos não é para qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30 anos é como sair do espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto, mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade, mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se aprendeu os limites da ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.
Fazer 30 anos é passar da reta à curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.
Fazer 30 anos é mais do que chegar ao primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.
(13.10.85)
O texto acima foi extraído do livro "A Mulher Madura", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1986, pág. 36.
Disponível em: Releituras
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Trecho de José no Egito, romance da série José e seus irmãos, de Thomas Mann.
Disponível no blog do Estivador __________________________________________________________________________
Outubro - Milton Nascimento
Um comentário:
Ô, Fred, que a vida te seja leve! Parabéns por não passá-la em branco!
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