outubro 28, 2009

voyeur

Entrei no metrô. Estava cheio, demais. Não entendi. Três e quinze da tarde. Depois lembrei. Os espanhóis almoçam em hora diferente. E voltam para o trabalho também. "Mais depois" que a gente. Andei umas quantas estações de pé. Com meu livro na mão, à espera de uma brechinha para abrir e ler. O iPod ia fazendo suas vezes de companhia. Mas eu estava mesmo era querendo seguir com minha leitura literária.

Depois de um tempo, comecei a ler de pé. O vagão do trem mais vazio, com espaço para passar as páginas e me segurar ao mesmo tempo.
No meio do caminho sentei. Ufa! Ainda restavam mais 12 estações. O assento já era mais que bem-vindo. Sentado eu podia não só ler, mas "apuntar" minha leitura (agora tenho a mania de escrever, à lapis, sobre o que estou lendo).

Pois bem. Acomodado, ditei um novo ritmo para os olhos e fui percorrendo a mancha tipográfica desnuda à minha frente. Feliz em poder saborear, "por inteiro", as letras portuguesas que se davam a ver (era um livro que ganhei de aniversário, vindo lá de Portugal).

Só que de repente, num daqueles instantes, entre virar uma página e olhar ao redor de mim, descubro, ao meu lado direito, uma outra mancha. Era um livro, com a coloração de papel igual a do meu e com uma tipografia que lembrava a minha.

Ampliei o momento viradouro e olhei discretamente aquelas páginas que se ofereciam. Creio que só eu sabia que o estava fazendo. Assim pensei durante todo o tempo.
Fui "mirando", não só por curiosidade, mas por deleite, o livro alheio. Naturalmente o fiz.

Quem estava lendo era uma moça, rubia. Lia com voracidade aquele volume. Bem maior do que aquele que eu portava. E em espanhol.

Por estar sentada à minha direita, as páginas pares de seu livro se escondiam. Eu podia ver apenas as ímpares.

Na primeira vez que olhei, veio ao meu encontro uma frase:
"Se volvió hacia mí: los ojos le brillaban y tenía la sonrisa más dulce que si pudiera imaginar".
Puxa! Continuei...
Não sabia que livro era. E tampouco isso importava.
Aquele papel encarnado de tipos, me convidava a correr sua carne.
Segui então, de soslaio.

Vez em quando olhava para meu livro. Lia um pouco, de pretexto. E me divertia ainda mais - também - com a minha leitura.

Segunda frase captada no balanço do trem e no movimento das mãos ao lado:
¿Qué podría hacer yo?
E terceira:
¿Me ayudas?
A essas alturas, o verso da capa do meu livro já ganhava a minha letra anotando tudo o que eu lia "alheiamente".
Ela, a moça loira, acabara de virar a página.

Saímos da 201 e enquanto ela lia a 202, eu já corria os olhos, lepidamente, pela 203. Nova nudez a buscar e a se oferecer. Parecia que aquele "corpo" conversava comigo. Ou mais. E então me disse: "Su sonrisa se convirtió en una frígida seriedad". Eu, sorrindo? Imagina...

Aliás, quem sorria? Que personagem? Eu não sabia.
Só que o personagem já era eu. Da minha história. Conversando com o (um) livro.
Ao alcançar a página 205, veio uma nova pergunta: 
"- Oye; hazme un favor, ¿quieres?"

Quando eu já me preparava para contestar, a dona-leitora ficou de pé e começou a preparar sua saída do trem. Tive tempo apenas de ver uma lasquinha da capa do livro, ainda aberto, consumido que estava por quem, também, o lia.
Consegui ler, naquilo que julguei ser o nome do autor, a terminação "eux". Um francês, quem sabe, traduzido ao castellano.

Voltei então para o meu livro ("No teu deserto", de Miguel Sousa Tavares) e na página 75, meu "eu-líríco" quase gritando disse, já junto ao rodapé: 
"- Ah, até que enfim! Estava a ver que nunca mais".

E eu respondi, sorrindo (muito e mais uma vez) para mim mesmo e para ele, buscando o francês que eu estava a (não) ler e aquele que eu pouco sei dizer:  je suis un voyeur.

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